Em 2011, resolvi que celebraria a data do meu aniversário em mais uma visita à Luang Prabang, no Laos, patrimônio mundial da Unesco desde 1995 em razão de sua cultura e ambientes naturais.
Minha primeira visita ao país se deu em 1997. Mas, desta vez, eu queria estar lá bem mais próxima em termos de interação com a vida e os hábitos locais, sonhava com os tradicionais barcos estreitos em madeira que via transitando pelo Mekong, pelos quintais da cidade.
E me embrenhei na pesquisa de me hospedar em uma casa local. Escolhi uma casa com 2 acessos: um exclusivo pelo rio Mekong, onde minha canoa estaria sempre estacionada para meus passeios no Mekong, e um outro através do vilarejo. Constatei, desde o pouso da aeronave sobrevoando o entorno da cidade, a paisagem verdejante entre as brumas que encobrem Luang Prabang. A cidade continuava em boa parte fiel a si mesma.
Muitos anos antes da assinatura do projeto Morando pelo Mundo, ou mesmo na casa de Luang Prabang, frequentemente contratei para aqueles que viajavam comigo uma refeição ou atividade específica em casas de família local, algumas vezes em datas comemorativas religiosas pelo mundo afora: no Tibet, no Ladakh, no Vietnã, Mongólia, Índia, República da Quirguizia, Albânia, Bornéu, Etiópia, Iêmen, Iran, Israel, Marrocos, entre outros destinos...
Mas, o divisor de águas que fez parte dos meus roteiros de viagem foi na Ciscaucásia...
O destino era completamente fora do circuito internacional, sem qualquer divulgação, mesmo em mercados bem especializados em explorar o inexplorado. Na Ciscaucásia encontra-se uma das mais belas paisagens que já visitei, notadamente a Ingushetia, república dentro da Federação Russa, com a sua capital Magas.
Ali em 2 anos consecutivos – 2017 e 2018, visitei 2 vezes aldeias muito antigas, uma delas em Koroda, cuja deserção em massa ocorreu há mais de 20 anos, em razão das condições do local do primeiro assentamento: em uma subida íngreme e exposta às corrosões do tempo, que pode ser cruel, e do risco (em certas partes) de desabamento das casas de pedras mais altas. A população absolutamente foi-se para a vila logo em frente: a Nova Koroda. Mas a Sra. Patinat, que já teve sua vida documentada e registrada em vários documentários e capas das mais importantes publicações estrangeiras, permaneceu. Os habitantes de Nova Koroda se revezavam para estar com ela todas as vezes que as suas duas filhas estavam ausentes. Eles velavam pela sua última moradora, guardiã das memórias de toda uma comunidade.
Em outra vila, Kubachi, o desafio foi maior, pois é envolta por uma onda mística sobre a descoberta de numerosas peças de cerâmica artística da mais fina qualidade, algumas ainda existentes na aldeia nas casas tradicionais de seus moradores. Embora haja semelhança do material de Kubachi com um tipo similar de porcelana, parece aos estudiosos mais credível que a produção seja em uma remota vila de montanha do Daguestão. Outros imaginam que em realidade elas teriam sido produzidas no centro mais próximo a Kubachi e, nesse caso, seria Tabriz, no Irã (o que mais uma vez foi contestado). A questão desenvolveu-se de tal forma que as hipóteses e teorias mais aceitas apontam a ideia de que de fato essa coleção não foi produzida em Kubachi, embora tenham sempre existido artesãos ali. Mas os moradores de Kubachi são notoriamente reconhecidos como excelentes comerciantes e, nesse sentido, essa vasta coleção de diferentes centros de produção, foi objeto de armazenamento dos comerciantes de Kubachi que detiveram em seu poder esses artefatos ao longo de 300 anos (em alguns casos, como parte dos dotes das noivas das aldeias).
Em Kubachi, onde obstinadamente eu queria ir, não existem hotéis, guest houses ou qualquer outra categoria de acomodação que se possa pernoitar. Foi aí então, que decidi, junto com os fornecedores locais, fazer uma pesquisa entre os moradores locais que desejassem e pudessem acolher em suas casas meu grupo de viajantes.
Na Ciscaucásia, pavimentei o caminho que me levaria a construir as bases do projeto, que só anos depois me veio em mente. Mas, quando veio, foi como se eu tivesse a planta baixa e renderizada do início ao fim de todo o projeto. Cada faceta, contorno, modelo. Foi como se a memória reproduzisse um filme completo sem qualquer necessidade de rascunho ou esboço. O projeto veio pronto.
Sobre o projeto, algumas condições: que as casas que quisessem participar deveriam concordar em receber uma retribuição que ao menos cobrisse o custo pelo serviço de hospedagem, que os anfitriões providenciassem o jantar e, no dia seguinte, o café da manhã. Necessariamente, essas casas deveriam ter banheiro e sanitário ocidental dentro da casa.
Nos distribuímos em 6 casas de família locais. Essas casas vêm há tempos hospedando estrangeiros de passagem. Uma delas é de propriedade de um membro que exerceu o cargo de administrador da vila. Em cada uma dessas casas, tivemos acesso a um cômodo mobiliado com cama, armário, sanitário e banheiro com água quente, entre outras facilidades. Identificamos entre a população mais jovem aqueles que em cada casa estariam com os hóspedes e agiriam como líderes na mediação de comunicação com poucas palavras em inglês, entre os hóspedes estrangeiros e a família anfitriã.
Foi incrível o resultado, muito além do esperado. E isso guardei na esquina de minhas mais doces e melhores memórias de viagem. Anos depois, nasceu o projeto Morando Pelo Mundo.
"The art of living is being at home as if it were a journey... and
being on a journey as if it were home!"